Nós, as Vulneráveis: a Dimensão Ética-política do Cuidado de Nós Mesmas

Em novembro de 2018, participei do I Colóquio Internacional de Educação em Direitos Humanos, que celebrava os 15 anos do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH). Na época, eu estava na coordenação do IDDH, uma organização brasileira pioneira na atuação junto a política de EDH no país e na região latinoamericana. Ocupávamos, inclusive, uma cadeira do finado Conselho Nacional de Educação em Direitos Humanos, representando a sociedade civil. Uma das mesas que integrei no colóquio era composta por figuras de peso na defesa dos direitos humanos no Brasil, daquelas históricas mesmo, que vêm nessa militância desde antes de eu nascer. E lá estava eu, diante de um auditório na Universidade de Brasília, ao lado de Lurdinha Nunes e Moacir Gadotti.

Em geral, nessa época eu já havia me habituado bem a dar aulas, proferir palestras e falar publicamente sem ficar extremamente nervosa como acontecia anteriormente. Mas naquele 27 de novembro, às vésperas dos meus 34 anos, eu tremia, por dentro e por fora, as mãos suavam, a respiração era curta e o peito ardia. E eu me perguntava: “o que está acontecendo? Por que isso?” Tentando – em vão – me acalmar, eu pensava “não fico mais nervosa para falar”. Diante daquela dificuldade tremenda de conseguir raciocinar de forma nítida e conseguir traduzir isso numa boa fala, comecei a me perguntar o que fazer diante dessa situação. Eu não tinha dúvida de que seria incapaz de disfarçar o nervosismo, então resolvi escancará-lo. Recebendo a palavra, cumprimentei as pessoas e contei o que eu estava sentindo. Foi aí que Gadotti pegou novamente o microfone e, num amoroso gesto de acolhimento, contou que Paulo Freire sempre ficava nervoso antes de alguma apresentação. Freire sabia da responsabilidade que tinha diante das pessoas a quem iria se dirigir. Ouvindo esse relato de um educador sensível, respirei e a vulnerabilidade que me fragilizava se tornou justamente a minha força.

Esse episódio foi mais um daqueles que me ajudou a elaborar essa questão complexa da vulnerabilidade. Quase um ano depois, eu estava em um quadro grave de transtorno de ansiedade e depressão, que me tirava completamente a vontade de viver. No processo terapêutico, consegui perceber que meu corpo já vinha me dando sinais há um bom tempo de que eu estava adoecida mentalmente. Por isso, uma habilidade que eu já havia desenvolvido – a de me comunicar publicamente – estava prejudicada naquele meu novo contexto. Vários fatores me levaram a receber esse diagnóstico e me impuseram a necessidade do autocuidado. Passei uma década conjugando os desafios do trabalho remunerado (em vários períodos trabalhando em duas ou três instituições ao mesmo tempo) com as tarefas de cuidado (é puxado dar conta da vida, não é? Trabalho doméstico não acaba nunca), minha formação como pesquisadora (o que inclui muita produção intelectual não remunerada) e a militância. Participar ativamente dos movimentos sociais é ao mesmo tempo algo fundamental na minha constituição individual mas, na minha entrega para a construção coletiva, muitas vezes me negligenciei. O desequilíbrio prolongado desse modo de vida acabou se tornando insustentável.

Curiosamente, em 2019 eu estava concluindo o doutoramento em Filosofia e uma das questões teóricas que refletem na práxis ecofeminista que desenvolvo no âmbito de um projeto ético-político, fundamentado em uma ética sensível ao cuidado, é justamente a vulnerabilidade. Com filósofas feministas, em especial as eticistas do cuidado, aprendi que a vulnerabilidade é comumente associada a aspectos negativos, relacionados a danos, fragilidades e fraquezas. Muitas vezes, essa visão contribui para a construção de um paradigma de invulnerabilidade, ou seja, que simplesmente ignora uma característica da qual não podemos fugir. A vulnerabilidade está relacionada à capacidade de sofrer danos, sejam eles físicos, emocionais, psicológicos ou sociopolíticos. Ainda que eles possam ser minimizados, é impossível erradicá-los completamente.

Por isso, a vulnerabilidade é uma característica geral e abrangente dos indivíduos, condicionando a vida de diversas maneiras. No entanto, ela não é sinônimo de fragilidade, fraqueza ou incapacidade. Ainda que seja em decorrência dessa condição, a vida não é afetada apenas de maneira negativa. É também em razão da vulnerabilidade que somos afetadas positivamente. São os cuidados que recebemos, desde o nascimento, que permitem o nosso crescimento. A questão é que a necessidade de cuidado não cessa nunca de forma absoluta, mesmo quando alcançamos a vida adulta. Ao longo da vida inteira, estamos numa condição de vulnerabilidade e co-dependência dadas por um conjunto de necessidades e capacidades físicas, cognitivas e sociais supridas por uma dimensão relacional.

Ressignificar a vulnerabilidade nesses termos derruba também a noção de autossuficiência dos sujeitos. Junto ao paradigma da invulnerabilidade, está também o ideal da autonomia pensada como independência. Logo, assim como a vulnerabilidade é vista como negativa, a dependência também o é. O problema é que essa prática – e essa pretensa postura independente – gera privilégios para uns em detrimento de desvantagens para outros (ou, mais especificamente, outras) que precisam assumir as atividades do cuidado. Isso acarreta, consequentemente, em políticas desiguais de distribuição de cuidado no tecido social.

A vulnerabilidade é experimentada de forma específica por cada indivíduo, dadas as circunstâncias que lhes são próprias, marcadas por relações pessoais, econômicas e institucionais. Como Ilze Zirbel explicou em sua tese de doutorado em Filosofia, o fechamento ético e epistêmico da postura de invulnerabilidade do sujeito acarreta não só uma forma de ignorar a dependência, mas também manter relações sociais opressoras e injustas. Por outro lado, o modelo de autonomia relacional ajuda a compreender o exercício da autonomia pelos indivíduos em diferentes contextos e condições marcados pela dependência.

Trazendo essas ferramentas teóricas para a experiência do adoecimento mental, para além da obviedade de ser uma questão bastante complexa, quero chamar atenção para o fato de não ser apenas uma questão individual. Estamos diante de uma questão social e, portanto, também política. Desassociar transtornos mentais da noção de fraqueza, impotência, fragilidade, falta de vontade e afins, é não só incorreto, mas eu diria também injusto. Da perspectiva individual, há potência em se reconhecer vulnerável e co-dependente. Outras virtudes, como resiliência e coragem, podem vir justamente desse lugar também de autoconhecimento. Socialmente, isso nos leva a acolher de forma mais adequada as pessoas que estão mentalmente adoecidas e, de forma mais ampla, a construir uma sociedade mais ética e justa.

Para nós, mulheres engajadas na luta por transformação social e na construção de relações de cuidado com a vida, livres de quaisquer formas de opressão, não podemos esquecer da dimensão ética-política do cuidado de nós mesmas. O cuidado de si é parte fundamental das práticas de cuidado que compõem uma práxis ecofeminista. Quando nós mesmas somos críticas ao individualismo e às diversas formas de dominação características das sociedades capitalistas, patriarcais e coloniais, precisamos ter o cuidado de não cair no outro lado desse suposto binarismo e nos entregarmos à sustentação da coletividade. Isso é o que o próprio sistema opressor faz, quando relega às mulheres o lugar da esfera privada e da reprodução social, ou seja, o lugar do cuidado. Politizar e reivindicar esse cuidado a partir de uma práxis ecofeminista torna possível a superação dessa visão binária e não exclui mutuamente o individual e o coletivo. Ressignificar a vulnerabilidade e reconhecer a co-dependência, como mostrei acima, nos ajuda nessa tarefa. Enfim, companheira, a vulnerabilidade que habita em mim saúda a vulnerabilidade que habita em ti. Cuidemo-nos.

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